Desafios na abordagem ao doente com dor crónica na era COVID-19: resposta atual e lições para o futuro

05/06/20
Desafios na abordagem ao doente com dor crónica na era COVID-19: resposta atual e lições para o futuro

Com o apoio da Tecnimede e chancela da Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (APED), a News Farma organizou um webinar dedicado à “Dor crónica em tempos de COVID-19”. Para falar sobre a adaptação das Unidades de Dor aos tempos de pandemia e a abordagem a estes doentes que atualmente está mais limitada, estiveram presentes na conversa virtual a Dr.ª Ana Pedro, presidente da APED, a Dr.ª Beatriz Craveiro Lopes, fundadora do Centro Multidisciplinar de Dor – Beatriz Craveiro Lopes (CMD-BCL) do Hospital Garcia de Orta (HGO), e o Dr. Manuel Pedro, médico anestesiologista do CMD-BCL.

 

“De facto, a dor crónica tem uma elevada prevalência na nossa população. Pelo menos três em cada dez adultos sofre de dor crónica, sendo um verdadeiro problema de saúde pública”, começou a Dr.ª Ana Pedro por assinalar no início do webinar. Tal como referido, a dor crónica afeta o doente no seu todo: física, emocional e psicologicamente, na sua capacidade de atividade e qualidade de vida.

Segundo a presidente da APED, “estes doentes têm uma suscetibilidade um pouco diferente dos outros doentes: têm stress e angústia muito maior, têm estados de depressão muito maiores”, que “pela situação epidemiológica que vivemos agora, podem agravar-se”.

“Uma grande quantidade de doentes que são acompanhados em Unidades de Dor Crónica são doentes que já de si têm uma suscetibilidade individual maior pelas respetivas patologias (p.e. comorbilidades associadas à idade, doença oncológica)”, declarou, acrescentando que, por isso, “são doentes que precisam sempre de muito apoio”.

De acordo com a Dr.ª Ana Pedro, “as Unidades de Dor, na sua grande maioria, estão organizadas de forma a conseguirem dar este apoio, muitas vezes sem ser presencialmente e também à distância”. Por isso, “foi necessário recrutar esta capacidade existente, através de consultas telefónicas ou teleconsultas, para que os doentes não se sentissem desapoiados porque além do receio que têm de contrair COVID-19, por saberem que podem fazer parte de um grupo de risco, outro dos grandes medos que estes doentes têm é de ficarem sem a assistência que estão, não só habituados, mas que necessitam de ter”.

Esta reorganização das Unidades de Dor aconteceu, tal como descrito pela presidente da APED, de forma diferente ao longo do País, fruto da evolução epidemiológica da COVID-19 em Portugal, e esteve dependente “da organização e autonomia que cada Unidade já tinha”.

“Da minha experiência com as consultas telefónicas, a maior parte dos doentes ficam agradecidos porque sentem que não foram abandonados”, informou a Dr.ª Ana Pedro, mencionando, no entanto, que há limitações nesta abordagem como, por exemplo, não se perceber como é que o doente está emocionalmente e a ausência de exame físico que, na dor crónica, é essencial para se poder aferir aquilo que pode ser a intervenção que é feita a múltiplos níveis.

Também a Dr.ª Beatriz Craveiro Lopes fez questão de sublinhar que “a dor crónica é uma doença por si só e a Medicina da Dor é uma disciplina”. “Portugal foi um dos 50 países que assinou a Declaração de Montreal em 2010, que reconhece direito ao tratamento da dor”, mencionou a médica, lembrando que este tratamento “cursa com uma farmacoterapia prolongada”.

Segundo a Dr.ª Beatriz Craveiro Lopes, tendo em conta esta fase de pandemia, “que veio alterar o sistema de vida de tanta gente, nomeadamente no caráter assistencial aos doentes”, existem, pelo menos, “oito princípios que não podem ser abdicados”:

  1. A acessibilidade: evitar a desigualdade no acesso aos cuidados de saúde;
  2. A celeridade;
  3. A equidade: todos os doentes são importantes;
  4. A proximidade;
  5. A humanização dos serviços;
  6. A qualidade dos cuidados prestados;
  7. A viabilidade dos cuidados;
  8. A sustentabilidade.

O objetivo é que o doente, “em circunstância alguma pode ser prejudicado pela pandemia” e, por isso, “as Unidades de Dor têm tentado minimizar isso, em função da logística e das características da população que acompanham”. Referindo-se ao teletrabalho, a Dr.ª Beatriz Craveiro Lopes disse que se tem tentado “prescindir da presença física sempre que possível”, mas “para isso é preciso que os profissionais possam ter acesso também em casa ao SClínico® (ao processo clínico informatizado)”.

“Para isto tudo ser possível, foi necessário criar, elaborar e implementar um plano de comunicação biunívoca”, indicou, aprofundando: “O profissional de saúde tem de ter acesso a dois segmentos de comunicação. Um que é interno, dentro do próprio hospital, entre profissionais da Unidade de Dor e outros das restantes Especialidades. O segundo segmento é externo que tem vários intervenientes, como os Cuidados de Saúde Primários, o próprio doente e/ou o seu cuidador, a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados ou, inclusivamente, com a Hospitalização Domiciliária”.

Por sua vez, no arranque da sua primeira intervenção, o Dr. Manuel Pedro frisou que, atualmente, “a vida está suspensa, mas a dor não. A dor existe e continua a atormentar os doentes”. “Este tipo de crises, como esta pandémica da COVID-19, tem as características típicas que causam alarme social e nestas situações impera o medo. Se não houver uma ajuda das mensagens que se transmitem à população para que esse medo não paralise as pessoas, vamos causar gravíssimas situações de saúde”, afirmou.

Em linha com as anteriores considerações, o anestesiologista referiu que “milhares de obrigações básicas do Serviço Nacional de Saúde ficaram por satisfazer: consultas, exames, diagnósticos e tratamentos ficaram para trás, e doentes ficaram por atender”. “Todo o doente com COVID-19 teve acesso a cuidados e foi muito meritória a resposta dos Serviços e dos nossos colegas”, indicou, informando, no entanto, que os restantes doentes, sem COVID-19, tiveram as vias normais de atendimento afetadas e que, inclusivamente, “morreram em casa porque os serviços estavam desarticulados”.

Focando-se na Medicina da Dor, o Dr. Manuel Pedro defendeu que, à semelhança de todos os outros doentes crónicos, também os doentes com dor crónica sofreram as consequências desta desorganização de serviços e cuidados. Por isso, a consulta telefónica foi uma ferramenta fundamental e “é um aspeto importantíssimo das Unidades de Dor”, porque é necessária “uma ligação e uma resposta rápida dos doentes quando lhes é instituída uma terapêutica, quando há um problema, ansiedade ou uma dor não controlada ou quando há efeitos adversos inconvenientes”. Porém, não permite o exame físico que é absolutamente necessário para o diagnóstico e limita o planeamento do tratamento que, “nas Unidades de Dor que estão mais evoluídas, não olham só para os aspetos farmacológicos, já que há intervenções não farmacológicas” que podem complementar a terapêutica destes doentes.

Sobre o tratamento farmacológico e aproveitando o facto de o webinar estar aberto à participação da assistência com perguntas, foi lançada uma questão sobre os opióides, relativamente à melhor forma de avaliar os doentes sob este tipo de fármacos, ao que o Dr. Manuel Pedro respondeu que os opioides são uma ótima opção para o tratamento da dor, apresentando um perfil de segurança favorável e acrescentou: “Os anti-inflamatórios são responsáveis por imensas hemorragias digestivas e problemas de falência renal. Os opióides não têm toxicidade de órgão (à exceção da petidina, mas que é administrada em contexto hospitalar). No entanto, evidentemente que os opióides têm de ser usados com critério porque têm efeitos adversos e têm de ser titulados”.

Apesar dos benefícios, o Dr. Manuel Pedro sublinhou que a “interrupção farmacológica brusca dos opióides pode causar síndromes de abstinência muito graves”. “Ou seja, é preciso manter uma informação adequada do modo de utilizar cada opióide e triar os doentes que possam ter características de adição, e usá-los nesses casos mais cuidadosamente. E ir reavaliando cada caso”, aprofundou.

Outra das questões colocadas pelo público foi se esta seria uma boa oportunidade para melhorar a relação entre pares e, consequentemente, otimizar a abordagem holística do doente. “Sem dúvida, sempre que somos pressionados e que existe algo que abala a rotina dos profissionais de saúde, temos uma oportunidade para pensar em que medida podemos melhorar”, respondeu a Dr.ª Ana Pedro, completando: “Esta pandemia pode e deve servir para pensarmos sobre como podemos melhorar a assistência que estamos a dar ao doente, quanto mais não seja porque o apoio terá de ser mais permanente”. A logística da programação da consulta telefónica é um dos aspetos que deverá ser otimizado pelo aumento do número de telefonemas, bem como a comunicação entre os médicos.

A assistência questionou igualmente a Dr.ª Beatriz Craveiro Lopes relativamente à sua opinião sobre se o futuro da Medicina da Dor passaria por uma estreita ligação com os Cuidados de Saúde Primários. “Os doentes pertencem às listas dos médicos de família e não às listas dos médicos dos hospitais. Portanto, não faz sentido a Medicina da Dor sem a ligação com os médicos dos Cuidados de Saúde Primários”, afirmou, continuando: “Há muita coisa que pode ser agilizada e melhorada, se houver desde logo um contacto entre colegas, até de preferência informal. E tem de se agilizar o aspeto da referenciação do doente”.

Outro dos tópicos abordados durante o webinar foi o documento publicado pelo Colégio da Competência em Medicina da Dor com “Recomendações sobre a Restrição de Atividades nas Instituições de Saúde e Proteção Individual”. Em comentário, a Dr.ª Ana Pedro frisou que neste documento ficou recomendado que as situações fossem avaliadas individualmente e “que sempre que fosse necessária a consulta presencial, esta fosse feita com os devidos cuidados, com equipamentos de proteção individual, e sem fazer o doente circular desnecessariamente pelo hospital, através de entrada direta ou aproveitar uma ida necessária ao hospital para outra situação, nomeadamente, tratamentos oncológicos”.

“Em relação aos doentes de primeira vez não-oncológicos, não podemos adiar a consulta eternamente, nem deixar os doentes num limbo. Portanto, o que fizemos no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca foi fazer um contacto com estes doentes e perceber qual era a situação em que se encontravam, para poder priorizá-los em relação à forma mais rápida de os ver neste lapso de tempo que tem havido”, descreveu, acrescentando que já “se estão a fazer as consultas presenciais aos doentes priorizados de primeira vez”.

Para o regresso à normalidade num futuro próximo, a Dr.ª Beatriz Craveiro Lopes considerou ser necessária a “separação de circuitos, de maneira a que seja permitida em simultâneo a prática da Medicina, tal como é no dia a dia, e a prática da Medicina dedicada à COVID-19”, para não acontecer o que se tem observado: “Um desperdício fenomenal, não deliberado, fruto da inexperiência, da ansiedade e, sobretudo, do desconhecimento”. Relativamente à Unidades de Dor, a médica defendeu a autonomização destas “porque não é possível sustentar de uma forma correta e rigorosa, cumprindo todos os princípios” e “viver de ‘empréstimos’ de médicos de determinada especialidade que vai em dias específicos”. “A outra questão é a agilização da acessibilidade dos doentes às Unidades de Dor e isso passa por uma rede de referenciação clínica geral e inter-unidades”, completou.

Outros dois aspetos mencionados pela Dr.ª Beatriz Craveiro Lopes foram os custos diretos e indiretos associados à dor crónica e a adesão à terapêutica, que deve combinar literacia do doente, bem como o seu envolvimento na decisão terapêutica, e da parte do clínico, regimes terapêuticos menos complexos.

Antes de terminar, os três especialistas apelaram a uma reorganização rápida dos serviços para se recuperar o tempo perdido e fazer o que foi deixado para trás, sem medo e com muito ânimo.

TTECN202S11DO maio/2020

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