“Tenho a honra de liderar a ANF como corolário do trabalho já desenvolvido por outras mulheres”

07/01/22
“Tenho a honra de liderar a ANF como corolário do trabalho já desenvolvido por outras mulheres”

Entrou na vida associativa na escola secundária e prosseguiu na Associação de Estudantes de Farmácia, quando ingressou no ensino superior. A Dr.ª Ema Paulino é a primeira mulher a presidir a Associação Nacional de Farmácias (ANF) e, em entrevista à News Farma, falou sobre a "visão alternativa para o futuro" que a conduziu à liderança desta organização para onde também leva know-how de organizações internacionais. Entre outros assuntos, a presidente da ANF focou a necessidade de oficializar o papel das Farmácias no Serviço Nacional de Saúde e a coesão territorial das Farmácias.

News Farma (NF) | Esperava vencer as eleições e tornar-se presidente da Associação Nacional das Farmácias (ANF)?

Dr.ª Ema Paulino (EP) | Quando nos propusemos ao cargo foi numa perspetiva de vir a ser bem-sucedidos. Era essa a nossa convicção. Estávamos otimistas e, sobretudo, com muita motivação.

NF | E o que motivou esta candidatura?

EP | Um grupo de pessoas juntou-se e concluiu que tinha uma visão diferente para os desígnios da ANF e do próprio grupo empresarial da Associação. Verificámos que havia confluência de opiniões em relação a algumas matérias, nomeadamente a alteração estatutária que todos julgávamos que era pertinente, tendo em conta os desenvolvimentos dos últimos anos. Motivou também o facto de reconhecidamente termos identificado alguns constrangimentos ao nível da tesouraria, que foram reflexo de algumas opções empresariais menos bem-sucedidas nos últimos anos e que nos levaram a querer imprimir uma nova recentralização da atuação do grupo nas cerca de 2900 farmácias. Portanto, a partir de um grupo de pessoas que se juntaram com a mesma convicção acerca daquilo que queriam ver mudado na ANF, foi constituída uma lista o mais representativa possível em todos os domínios.

NF | Como recebeu o resultado indicador de que iria assumir a presidência da ANF, com 58% dos votos?

EP | Com satisfação, com muito otimismo e com um sentimento de apoio às nossas linhas programáticas, sendo que algumas entravam em rutura com aspetos que pautavam a organização anterior. Fomos muito claros nas nossas intenções ao nível da alteração estatutária e na forma (diferente) de assumir a Associação, por exemplo com a separação das áreas empresarial e associativa. A diferença em termos de votação, com 58% dos votos, conferiu-nos uma maior legitimidade para implementarmos as linhas programáticas que propusemos.

NF | Assumiu o cargo de presidente da ANF no final de junho de 2021. O que encontrou quando iniciou funções?

EP | Já conhecia a organização, fiz parte da direção liderada pelo Dr. João Cordeiro. Mas, claro, houve muitas alterações durante os últimos oito anos, período em que estive mais afastada por assumir funções na Ordem dos Farmacêuticos (OF). Não foi novidade nem para mim, nem para muitas das pessoas que constituem a lista, porque também já tinham ocupado cargos na organização. O que encontrámos não foi muito diferente daquilo que esperávamos encontrar quer do ponto de vista da organização, quer dos desafios que sabíamos existirem.

NF | Que balanço faz dos primeiros meses a presidir a ANF?

EP | Logo após a tomada de posse surgiu a questão da realização dos testes rápidos de antigénio, tendo comparticipação por parte do Serviço Nacional de Saúde (SNS), pelo que houve necessidade da ANF apoiar as Farmácias para a implementação desse serviço. Também temos vindo a aprofundar conhecimentos de dossiês, de acordo com o que já esperávamos encontrar, que tem que ver com os constrangimentos de tesouraria do grupo ANF, que eram conhecidos e que motivaram a necessidade de se fazer um acordo com a banca, no sentido de reestruturar a dívida existente ao nível do grupo. Neste aspeto, assumimos uma posição diferente da outra lista e da direção anterior, de forma a amortizar essa dívida de forma mais agressiva, para podermos mais rapidamente (do que inicialmente previsto) recuperar o controlo sob os ativos e, dessa forma, assegurar a independência, para o grupo poder continuar a investir. Estamos, assim, a operacionalizar uma reestruturação desinvestindo em áreas que não são estratégicas nem para as Farmácias nem para o grupo. E, neste momento, estamos a estudar quais as áreas que não são estratégicas para promovermos as reestruturações.

NF | É a primeira mulher à frente da instituição. Qual o significado que tem para a Dr.ª Ema Paulino aquilo que representa uma mulher liderar e, em especial, ser a primeira mulher nessa liderança?

EP | Tenho a honra de liderar a ANF como corolário do trabalho já desenvolvido por outras mulheres que me antecederam e tiveram posições muito relevantes no seio da organização, como a Dr.ª Maria da Luz Sequeira, que foi vice-presidente da ANF. No geral, as mulheres têm assumido cada vez mais posições de liderança e têm estado mais disponíveis.

NF | Sente, assim, que está a abrir caminho para outras mulheres?

EP | Espero que sim! Já na Federação Internacional Farmacêutica (FIP) também fui a primeira mulher no comité executivo, algo que tive conhecimento só depois de ter sido eleita. É uma organização com mais de 100 anos e nem queria acreditar! Sou uma privilegiada, por na minha geração uma mulher assumir certos cargos de liderança já é encarado com naturalidade, felizmente.

NF | Pensava algum dia assumir este cargo?

EP | Não foi propositadamente construído. Foi surgindo. Tive o privilégio de presidir a Associação Portuguesa de Estudantes de Farmácia (APEF), mas anteriormente já tinha feito parte da Associação de Estudantes no ensino secundário. Foi com naturalidade que entrei na vida associativa.

NF | O que gostaria de destacar do seu percurso?

EP | Durante a minha presidência na APEF, organizámos um congresso europeu sobre a adaptação dos currículos de Ciências Farmacêuticas. O Dr. João Silveira era bastonário da OF e convidou-me para o comité da organização e foi quando comecei a interagir com o associativismo profissional, primeiro com a OF e depois com a ANF. Depois de terminar o curso, envolvi-me em associações internacionais de estudantes, ganhei visibilidade na FIP, que estava envelhecida e havia o objetivo de a tornarem mais apelativa. Quando comecei a trabalhar, em 2001, recebi o convite por parte do Dr. João Cordeiro para integrar a direção da ANF, na sequência da minha interação enquanto líder dos estudantes com associativismo profissional. Em 2012, o então bastonário da OF, o Professor Maurício Barbosa, lançou-me o convite para me apresentar como candidata à presidência da Secção Regional do Sul e Regiões Autónomas. Considerei um desafio interessante e diferente, visto ter estado mais ligada à farmácia comunitária e nessa função iria conhecer e interagir com colegas de outras áreas da profissão. Aceitar esse desafio, cessei as minhas funções na ANF, candidatei-me, venci as eleições e cumpri dois mandatos. Quando perspetivava o meu desenvolvimento na OF, surgiu a oportunidade da candidatura à presidência da ANF. 

NF | E venceu as eleições. O que salienta do plano de atividades proposto?

EP | Claramente, a alteração da questão estatutária que é importante porque diz respeito ao desenvolvimento futuro do grupo tanto ao nível associativo como em termos empresariais. Dentro da alteração estatutária, gostaria de realçar a separação destes dois universos – associativo e empresarial – para não haver conflitos de interesses. Também a nossa intenção de introduzir limitação de mandatos é importante, para haver renovação de ideias e de liderança, para trazer outras perspetivas e para ser uma oportunidade para as pessoas, que almejam chegar a estes cargos, terem motivação para se envolverem na estrutura associativa e apresentarem as suas alternativas em termos de visão. O modelo de gestão é outra área que queremos desenvolver. Acordamos que ninguém dos órgãos sociais iria ocupar cargos executivos nas empresas ou na associação, tanto que continuamos a trabalhar nas nossas farmácias e outras atividades e trazemos essa vivência para o nosso trabalho associativo, ou seja, centrar e recentrar a atividade da ANF na proposta de valor que queremos dar às farmácias ou à sociedade através das farmácias. Até porque, a ANF sempre teve esta questão de oferecer serviços diretamente às farmácias mas também de desenvolver propostas de valor para a sociedade que as farmácias depois operacionalizam. Queremos continuar a desenvolver e reforçar a farmácia como espaço de saúde e bem-estar e, especialmente, promover uma maior integração das farmácias no sistema de saúde. Em complementaridade com o SNS, podemos prestar serviços à população que sejam úteis devido à capilaridade, à proximidade e à competência, que as Farmácias têm por via das suas equipas e localização. Pretendemos que alguns serviços sejam contratualizados pelo SNS como foi o dos testes rápidos de antigénio. Com uma remuneração específica atribuída às Farmácias pelo desenvolvimento desses serviços de valor acrescentado, será ainda mais reconhecido o papel que as farmácias ao dia de hoje desempenham, o qual ultrapassa a função tradicional, da promoção da acessibilidade ao medicamento e da sua efetividade e segurança, para que o investimento se transforme em resultados em saúde. Mas as farmácias têm uma responsabilidade: estarem presentes nas várias etapas da jornada de vida das pessoas, desde o nascimento. Muitas pessoas só vão ao médico quando se sentem doentes ou têm sintomas, porém, durante a sua jornada de saúde, vêm às farmácias muito cedo, havendo aqui uma oportunidade de promoção da saúde, prevenção da doença e identificação de pessoas em risco. Há que oficializar esse papel das farmácias, identificando a responsabilidade de estarem presentes nas várias fases e utilizar esse capital junto da população para benefício do SNS e das próprias pessoas. 

NF | A valorização do capital humano constava também nas linhas programáticas.

EP | A valorização do capital humano é um assunto interno, contudo com impacto externo. Fala-se das Farmácias como uma rede de proximidade, mas, muitas vezes, não é a nível físico. Ou seja, a rede de farmácias tem valor não só pelo facto de estar próxima da população, mas também pela qualificação dos profissionais, que são altamente capacitados para poder intervir de forma positiva na saúde das pessoas. Queremos muito valorizar esse capital humano, com a criação de iniciativas, no sentido de promover a progressão profissional e visando investir na formação e na diferenciação, para poderem prestar ainda um melhor serviço. Temos, em média, 3,7 farmacêuticos por Farmácia, sendo um valor acima da média europeia, e pretendemos aproveitar ao máximo esse valor.

NF | Chegou à ANF durante a pandemia. Considera que a proximidade tão característica dos farmacêuticos e das farmácias ficou beliscada ou foi fortificada?

EP | Foi reforçada. Aliás, foi uma das conclusões de uma reunião europeia, pelo feedback dos países em relação ao contributo do farmacêutico durante a pandemia e a valorização da sociedade, bem como a visão da sociedade e do sistema de saúde dos farmacêuticos. Este facto foi evidenciado em vários países, com o envolvimento das farmácias em estratégias de testagem, vacinação, acessibilidade ao medicamento, sendo que foram inclusive feitas alterações legislativas para permitir esse envolvimento. Em Portugal, consideramos pertinente e urgente a renovação das prescrições poder ser feita nas Farmácias, ou seja, nós podermos reativar as receitas médicas para que as pessoas não fiquem sem acesso à medicação. Até porque as Farmácias nunca deixaram de prestar o serviço à população, ao contrário de outras estruturas de cuidados de saúde primários como os centros de saúde que a certa altura da pandemia fecharam as portas. Além disso, reinventaram-se: aceleraram a implementação das dispensas ao domicílio, ficaram com a dispensa em proximidade porque se queria evitar que as pessoas se deslocassem aos hospitais e, consequentemente, foi criado o projeto Operação Luz Verde, com o objetivo de promover a dispensa dos medicamentos hospitalares através das farmácias comunitárias. Foi também alargada a Linha 1400, que foi criada para proporcionar acesso ao medicamento e assistência farmacêutica em qualquer hora do dia. Houve uma série de intervenções, que foram operacionalizadas e potenciadas. Houve ainda um grande reconhecimento das autoridades ao incluir as farmácias nos estabelecimentos de bens essenciais, nos confinamentos.

NF | Como já referiu, alguns medicamentos fornecidos pelas farmácias hospitalares foram fornecidos nas Farmácias comunitárias. Como classifica esta necessidade, aliás, já identificada antes da pandemia?

EP | Exato, já era uma necessidade que existia no passado. Em alguns pontos do País, algumas pessoas têm por vezes de se deslocar centenas de quilómetros para irem aceder a um medicamento para uma patologia que está controlada, ou seja, não vão para uma avaliação médica mas apenas para levantar medicação. A necessidade de se encontrarem soluções que permitissem diminuir distâncias e o absentismo laboral, já tinha sido identificado e decorreram experiências piloto lançadas pelo Ministério da Saúde, como o projeto TARV, que visa dispensar medicamentos na área do VIH/SIDA. Com o intuito de testar o modelo, vários hospitais portugueses já tinham adotado algumas soluções com as farmácias das zonas para promover a dispensa por proximidade e o contexto pandémico veio acelerar e evidenciar essa necessidade. Durante a pandemia, foram reunidos os parceiros necessários (farmácias comunitárias, distribuidores farmacêuticos, indústria farmacêutica, serviços hospitalares, OM, OF) para implementar a Operação Luz Verde.

NF | Que balanço poderá ser feito da Operação Luz Verde?

EP | Ainda está a decorrer e o parecer é positivo, segundo alguns indicadores recolhidos nas avaliações feitas ao sistema, como sejam logísticos e de qualidade de vida – distâncias percorridas, tempos de espera, adesão à terapêutica. O que mais evidencia o resultado positivo é o facto de as associações de pessoas que vivem com a doença defenderem que esta solução seja perpetuada e que seja a própria pessoa a escolher onde deseja receber a medicação.

NF | Qual a posição da ANF sobre a contratualização de serviços às farmácias pelo SNS, como é o caso dos testes rápidos de antigénio que também já teve a oportunidade de mencionar durante esta entrevista?

EP | Acreditamos que pode funcionar, tal como funciona a contratualização do acesso à medicação. Pode até fazer parte do modelo de remuneração às Farmácias, independentemente de termos um enquadramento legislativo que nos permita desenvolver vários serviços. A maior parte dos serviços disponibilizados pelas Farmácias são pagos pela população e nem sempre as pessoas têm capacidade económica para aceder aos mesmos, portanto o Estado substituir-se a esse pagamento iria permitir a um maior número de pessoas usufruírem dos serviços de que necessitam, como por exemplo a gestão da polimedicação e, entre outros serviços, a cessação tabágica. Este modelo existe noutros países, como no Reino Unido, pelo que para nós faz todo o sentido avançarmos neste caminho que, por um lado, proporciona serviços que são uteis à população do ponto de vista clínico e de apoio; por outro, gera poupanças de saúde de uma forma mais lata. Em Portugal, continuamos a ter muitos episódios de urgências hospitalares de pulseiras azuis e verdes. No Reino Unido, por exemplo, propõe-se que antes de as pessoas irem ao hospital, se dirijam à farmácia onde é feita uma avaliação e triagem e, na verdade, algumas situações podem ser resolvidas na farmácia, noutras situações o farmacêutico pode constatar que carece de outro acompanhamento e faz o reencaminhamento. Desta forma, há uma maior integração dos sistemas e um maior aproveitamento da farmácia comunitária como porta de entrada no sistema de saúde. No âmbito de uma contratualização e integração, defendemos o acesso e partilha de dados, para haver uma boa comunicação entre as instituições e entre os profissionais de saúde. Algo que do ponto de vista tecnológico não é um problema. Portanto, é mais uma questão política e de conceção de um sistema com maior partilha.

NF | Acredita na concretização dessa integração?

EP | Acredito. Já demos passos importantes nesse sentido. Serve de exemplo a questão da vacinação contra a gripe, hoje considerada uma complementaridade de ação do SNS e das farmácias. Essa integração já é feita de uma forma informal, porém precisamos de uma formalidade para ainda melhor servir as pessoas e o sistema nacional de saúde. Precisamos dessa formalidade ao nível da partilha de dados – repito – e no reconhecimento através da remuneração do trabalho que é desenvolvido. São esses domínios que faltam, pois, a maior parte das pessoas que usam as farmácias vêem-nas como parte do sistema de saúde. 

NF | E relativamente à coesão territorial das farmácias, qual o caminho a seguir no sentido de melhorar?

EP | Esta é uma questão que nos preocupa. Existem farmácias localizadas em zonas remotas do País que são as únicas entidades de prestação de cuidados de saúde e servem uma população cada vez mais reduzida e envelhecida, com mais necessidades em saúde e mais dificuldades de deslocação. No passado, a estratégia de apoio a essas estruturas era feita com a redução do nível de serviço (existe legislação que permite às farmácias mais pequenas reduzirem o horário de funcionamento e o quadro farmacêutico). Para nós, este não é o caminho, pelo contrário. Muitas das vezes, essas Farmácias, por estarem em zonas remotas, precisam de estar abertas e de ter um quadro de farmacêuticos mais robusto, de forma a dar resposta às necessidades em saúde da população da zona. Portanto, temos de encontrar mecanismos de incentivo financeiro e económico para que essas farmácias continuem a poder desenvolver o seu trabalho, passando desta forma a ser encaradas como estruturas oficialmente parte do SNS e inclusivamente possam promover ligação com os centros de saúde. Queremos valorizar essas farmácias, por isso estamos a identificar quais podem ser alguns destes incentivos e alguns destes serviços de forma a podermos dirigir uma proposta tanto ao Ministério da Saúde como ao Ministério da Coesão Territorial. 

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