O elefante está no meio da sala e come-se às postas: metáforas da obesidade

Dr.ª Ana Calafate
04/03/22
O elefante está no meio da sala e come-se às postas: metáforas da obesidade

A Dr.ª Ana Calafate, médica de família na USF Garcia de Orta, no Porto, partilha um artigo de opinião, para assinalar o Dia Mundial da Obesidade, que se celebra hoje, 4 de março, destacando que mais de metade dos portugueses (67,6%), acima dos 15 anos, têm excesso de peso ou são obesos. Leia o artigo.

Dia 04/03 celebra-se o World Obesity Day (WOD) ou o Dia Mundial da Obesidade em português. É um dia de ação unificada que exige uma resposta coesa e intersectorial à crise da obesidade, convocado pela Federação Mundial da Obesidade, em colaboração com os seus membros globais. Centenas de indivíduos, organizações e alianças contribuem todos os anos para o Dia Mundial da Obesidade, envolvendo milhares de pessoas em todo o mundo.

E o que é que o WOD tem a ver com esta conhecida expressão metafórica? Pois bem, a obesidade é o elefante na sala que teimamos em ignorar. Mais de metade dos portugueses (67,6%), acima dos 15 anos, têm excesso de peso ou são obesos. São dados divulgados no relatório Health at a Glance, que colocam Portugal no quarto lugar da lista dos países da OCDE com mais obesos. Aos seis anos 10,8% das crianças portuguesas sofrem de obesidade, uma taxa que sobe para os 15,3% aos oito anos. O custo direto do excesso de peso e obesidade foi estimado em cerca de 1,2 mil milhões de euros, aproximadamente 0,6% do PIB e 6% das despesas de saúde em Portugal, conclusões do estudo “O Custo e Carga do Excesso de Peso e da Obesidade em Portugal”, elaborado pelo Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência (CEMBE) e pela consultora Evigrade-IQVIA, com o patrocínio científico da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade (SPEO) e o apoio da Novo Nordisk Portugal. No entanto, apenas 2% dos doentes com obesidade recebem tratamento dirigido para esta condição. Parece um elefante demasiado vistoso e caro para não o conseguirmos ver….

Coloquemos estes números de outra perspetiva – 6 em cada 10 portugueses têm excesso de peso ou obesidade. E esta é a grande questão – como é possível que uma problemática tão impactante não tenha uma resposta estruturada? Continuamos em Portugal a ter no SNS e nos diferentes níveis de cuidados de saúde, medidas avulsas e sem um fio condutor para que a sua implementação tenha verdadeiro ganho em saúde. E isso só começa quando decisores políticos, sociedade civil e a comunidade dos profissionais de saúde reconhecerem a obesidade como doença que é.

Embora muitos dos determinantes relacionados com o estigma e impacto da obesidade ultrapassem a “jurisdição” da área da saúde, é precisamente nesta área que as pessoas com obesidade e excesso de peso enfrentam maiores barreiras, com menor acesso aos cuidados de saúde. Reconhecer a obesidade como uma doença, abandonando o discurso da culpa individual, encorajará a procura de cuidados médicos e garantirá que o acesso ao tratamento estará disponível para todos que precisem.

Mas não bastam Centros de Responsabilidade Integrada de Obesidade (CRIO) nos hospitais – que com certeza são muitíssimo importantes e estarão ainda aquém do necessário – precisamos de respostas de proximidade estruturadas a oferecer aos doentes que todos os dias nos aparecem nos consultórios dos centros de saúde. Precisamos de mais nutricionistas nos Agrupamentos de Centros de Saúde, precisamos de mais psicólogos (para ajudar na gestão da saúde mental, que anda tantas vezes de mão dada com a obesidade…), sozinhos não conseguiremos chegar a todo o lado. E já agora que estamos a projetar o cenário ideal, precisamos de técnicos de exercício físico, a prescrever planos terapêuticos individualizados que ajudem a motivar as pessoas para a mudança de comportamento.

Falemos também da iniquidade do acesso aos tratamentos. Apesar da resolução emanada da Assembleia da República em julho de 2021, a comparticipação dos medicamentos aprovados para o tratamento da obesidade em Portugal ainda é inexistente. Nenhum dos três fármacos aprovados para este fim – seguros e eficazes - viu aprovada a sua comparticipação. Nenhum. O que quer dizer, que um obeso com IMC superior a 40 kg/m2 tem acesso gratuito a consultas multidisciplinares num hospital diferenciado e eventualmente, uma cirurgia metabólica gratuita, mas os medicamentos existentes para evitar chegar até aí podem custar 240€ por mês e terão que ser suportados na sua totalidade pelo próprio… Além de que sabemos que a prevalência da obesidade é maior em extratos socioeconómicos mais baixos, o que deixa estes indivíduos duplamente sujeitos a esta desigualdade.

É aqui que vos queria transportar para outra metáfora da programação neurolinguística. Sabem como se come um elefante? Às postas. Como qualquer outro problema, tudo se resolve por partes, em vários pequenos pedaços de solução que integrados conseguem acrescentar valor à perspetiva macro do problema. E tudo começa na base do sistema. A consulta organizada de obesidade nos cuidados de saúde primários tem que existir – os médicos de família precisam de tempo protegido para poder tratar estes doentes e precisam de meios para os ajudar.

Que sirva este Dia Mundial da Obesidade para voltar a lançar este desafio – todos precisam de todos e a obesidade precisa de todos. A nossa janela de oportunidade para garantir melhores cuidados à obesidade, mais resilientes e mais sustentáveis é agora.

Partilhar

Publicações