Lembrar Maria Serpa dos Santos no seu centenário (1916-2016)

Prof.ª Doutora Victoria Bell e Prof. Doutor João Rui Pita
19/07/16
Lembrar Maria Serpa dos Santos no seu centenário (1916-2016)

Passam este ano 100 anos sobre o nascimento de Maria Serpa dos Santos, distinta professora e investigadora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra. Com mais de quatro décadas de carreira universitária a Professora Doutora Maria Serpa dos Santos está bem presente na memória de todos os que com ela privaram. Para além de uma longa atividade pedagógica, legou-nos uma obra escrita, tanto de natureza científica como divulgativa. Foi a primeira mulher a doutorar-se em farmácia em Portugal. Por todas estas profundas marcas e porque em 2016 passam, como referimos, 100 anos sobre o seu nascimento, Maria Serpa dos Santos é merecedora de ser lembrada e a sua obra estudada aprofundadamente.

Breves notas biográficas

Maria Serpa dos Santos era natural do sítio do Mirante, freguesia da Conceição, concelho da Horta, Açores. Nasceu no dia em 5 de junho de 1916. Assim se inscreve na certidão de nascimento do seu processo de professor existente no Arquivo da Universidade de Coimbra.

Os seus pais, Domingos José dos Santos, com 29 anos, sargento de infantaria, e Maria Serpa, de 17 anos, eram, respetivamente, naturais de São Tomé de Castelo, concelho e distrito de Vila Real e da freguesia de Matriz, concelho da Horta e, aquando do seu nascimento, eram residentes no Mirante. Maria Serpa dos Santos faleceu em Carcavelos em 27 de maio de 2011 onde residia desde 1985 repartindo-se, também, com estadias na Suíça. Encontra-se sepultada no cemitério de Santo António dos Olivais, em Coimbra. Era nesta freguesia de Coimbra que residia quando se aposentou, mais concretamente na Fonte do Castanheiro.

A formação farmacêutica em Coimbra e no Porto

Maria Serpa dos Santos realizou os estudos secundários em Luanda e concluiu o ensino liceal em Coimbra. Foi uma aluna distinta tendo recebido diversos prémios. Matriculou-se na Escola de Farmácia da Universidade de Coimbra tendo concluído o curso em 1939. Matriculou-se depois na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto tendo-se licenciado em farmácia em 1941 com a média de 17 valores.

Na época, as Escolas de Farmácia de Coimbra e de Lisboa apenas podiam conceder o grau de bacharel, três anos de curso, o que dava para o exercício profissional em farmácia de oficina. Entre 1932 e 1968, apenas a Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto manteve o estatuto de Faculdade podendo conceder todos os graus académicos.

Recorde-se que toda a formação superior de Maria Serpa dos Santos foi obtida em plena Segunda Guerra Mundial. Este conflito bélico do ponto de vista social e económico provocou constrangimentos de grande significado na sociedade portuguesa, mesmo não tendo Portugal entrado no conflito.

A carreira académica: do doutoramento no Porto a professora catedrática em Coimbra

Em 1941, Maria Serpa dos Santos tomou posse como preparadora da Escola de Farmácia da Universidade de Coimbra. Em 1945, foi nomeada para assistente voluntária tendo ascendido na carreira académica até ser professora catedrática na Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra em 1972. Este assunto não passou indiferente no meio farmacêutico nacional. Neste ano a Revista Portuguesa de Farmácia, na rubrica “Ecos e Factos” num artigo intitulado “Festejando...” (p. 287-288) escreveu sobre Maria Serpa dos Santos: “É a primeira senhora que ocupa este lugar nas Faculdades de Farmácia do País”.

Algumas linhas depois continua destacando a professora: “A Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra viu, assim, os seus quadros aumentados de um professor considerado dos maiores valores da Farmácia Portuguesa e simultaneamente a Classe Farmacêutica Portuguesa sente-se mais glorificada ao contar, pela primeira vez no seu historial, com uma colega exercendo tão altas funções docentes”.

Recorde-se que em 1947 Maria Serpa dos Santos havia apresentado a sua tese de doutoramento: “Os factores de crescimento das bactérias lácticas: Lactobacillus acidophilus. Contribuição para o seu estudo”. Este estudo foi apresentado na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto pelos motivos atrás referidos. Foi a primeira mulher doutorada em farmácia em Portugal. Poucos anos antes, em 1944, havia prestado provas de doutoramento na Universidade do Porto a primeira mulher — Leopoldina Paulo — em Ciências Biológicas. Maria Serpa dos Santos foi praticamente pioneira na obtenção do doutoramento na Universidade do Porto.

Maria Serpa dos Santos foi diretora do Laboratório de Farmacofísica e Análises Físico-Químicas da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra e após a revolução do 25 de Abril de 1974 foi presidente do Conselho Científico daquela Faculdade entre 1976/77 e 1978/79. Aposentou-se em 1984.

Maria Serpa dos Santos: Pedagoga e Investigadora

A Professora Doutora Maria Serpa dos Santos desempenhou funções docentes em diversas disciplinas do curso de farmácia e dos cursos de férias da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra e também exerceu significativa atividade de investigação naquela instituição. Paralelamente a estas funções teve ainda a colaboração na direção científica e técnica de um laboratório de análises clínicas na cidade. Ensinou disciplinas como Microbiologia, Criptogamia e Fermentações, Farmacofísica, Análises Físico-Químicas, Química-Física, Física Aplicada à Farmácia, Hidrologia.

As diferentes publicações que realizou testemunham a investigação realizada e a difusão que pretendia fazer de determinadas áreas do saber. Realizou inúmeras traduções científicas. Entre os seus estudos e traduções assinalam-se publicações, por exemplo, no domínio da análise instrumental, da física aplicada à farmácia, da microbiologia, da higiene e Saúde Pública e do ensino farmacêutico.

Foi no “Notícias Farmacêuticas e Boletim da Faculdade de Farmácia” da Universidade de Coimbra, revista científica prestigiada, que publicou grande parte dos seus estudos de investigação e divulgativos. Neles encontramos uma incidência forte de estudos microbiológicos, estudos sobre novos fármacos como a penicilina, estudos analíticos tendo como base a cromatografia.

Assinalam-se entre muitos trabalhos, apenas a título de exemplo, as traduções R. Cruicksbank et al, “Microbiologia médica”, dois volumes (com várias edições, da Fundação Calouste Gulbenkian, 1978); H. H. Willard et al, “Análise instrumental” (edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed. 1979); E. C. Faust et al, “Agentes e vectores animais de doenças humanas” (edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª ed. 1988). Entre outras traduções assinalam-se: P. Nieger, “Alcoolismo” (1964), C. Boudene, “Doenças profissionais de manifestação sanguínea provocadas pelos agentes químicos” (1966), Y. Clement, “Socorros de urgência nas queimaduras químicas” (1966), A. Ouevauviller, “Higiene do camping: ficha de educação sanitária e social” (1966), “Noções de educação sanitária para uso do pessoal docente” (edição original da Cruz Vermelha Belga, 1969).

No que concerne a artigos, entre muitos, apenas como exemplos, citam-se: “Alguns ensaios sobre a vitalidade das bactérias nas bebidas alcoólicas” (1939), “As bebidas alcoólicas e a Guerra microbiana” (1942), “A análise cromatográfica” (1943), “Os barbitúrico”s (1945), “Os virus de algumas doenças tropicais” (1945), “O ensino de farmácia nos Estados Unidos da América do Norte” (1945-1946), “Fermentações industriais” (1946-1947), “Sobre o método de Bahoy para a coloração de Mycobacterium tuberculosis” (1957), “Sobre um novo bacilo com actividade antibiótica” (1957), “Sobre a natureza dos ultravíru” (1957), “Fundamentos dos métodos de partilha cromatográfica” (1958), “Pesquisa de vitaminas hidrossolúveis em especilidades farmacêuticas” (1958), (1961),is de 1950 e 1955 e as intoxicaçrodutos de degradaçcentes em diversas disciplinas da Escola / Faculdade de Farm “Alguns aspectos do quimismo bacteriano” (1960), “Farmacologia das radiações inonizantes” (1960), “Soluções injectáveis de cloreto de colina e as intoxicações mortais de 1950 e 1955” (1961), “Antissépticos e desinfectantes” (1962), “Notas sobre a electroforese das proteínas em gele de amido (1964), Pesquisa de mycobacterium tuberculosis por fluoromicroscopia” (1964), “Nota sobre a electroforese em gele de gelose” (1964), “Técnica simples e rápida em camada fina” (1968), “Determinação espectrofotométrica da tetraciclina por reacção com o ácido sulfúrico concentrado” (1971), “Cromatografia em camada fina” (1973), “Cromatografia radial modificada” (1973). Como monografias publicou ainda “Física Aplicada à farmácia” (2.ª ed. Revista, 1968) e “Legislação farmacêutica portuguesa” (em col., 1972) obras que podiam ter larga aplicação também no ensino.

Entre as suas publicações, merece destaque a divulgação que fez da penicilina e os antibióticos em geral. Foi o caso de “Penicilina e produtos similares” (1944), “Preparação da penicilina” (1944-45), “Aferição da penicilina” (1945), “Formas farmacêuticas de penicilina” (1947), “Nova reacção corada da tetraciclina” (1971), “Determinação espectrofotométrica dos produtos de degradação da tetraciclina” (1971), “Determinação espectrofotométrica da oxitetraciclina por meio de reacção corado com o ácido sulfúrico” (1971), “Cromatografia em camada fina de poliamida na reparação das tetraciclinas” (1973), “Separação cromatográfica da eritromicina, seus derivados e produtos de degradação” (1974).

Maria Serpa dos Santos viveu parte da sua vida num mundo sem antibióticos, assistiu ao seu aparecimento e verificou que eles alteraram radicalmente o entendimento da terapêutica anti-infecciosa. As publicações da Professora Doutora Maria Serpa dos Santos sobre a penicilina são feitas em cima do processo de introdução e dos primeiros tratamentos com o fármaco em Portugal o que testemunha a sua enorme atualidade científica. Também no curso de férias, organizado pela Escola de Farmácia da Universidade de Coimbra em 1944, abordou o tema mesmo antes da introdução do antibiótico em Portugal. Em 1959, Maria Serpa dos Santos apresentou ao Instituto de Alta Cultura (IAC) um projeto de investigação sobre técnicas de dosagem de antibióticos e vitaminas, aplicadas às especialidades farmacêuticas que acabou, contudo, por não ser financiado pelo IAC.

Uma faceta pouco conhecida

Uma faceta pouco conhecida da Professora Doutora Maria Serpa dos Santos era os seus interesses pela música. O antigo aluno, e posteriormente colega seu, João Poiares da Silva, em artigo redigido a propósito do seu falecimento, salienta esta faceta pouco conhecida da professora de Coimbra.

Considerações finais

Maria Serpa dos Santos é uma figura marcante da vida científica e da farmácia portuguesas em particular da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra. Com interesses científicos multifacetados, onde se sublinham as suas motivações pela microbiologia, análise instrumental e higiene e saúde pública, exerceu durante cerca de quatro décadas o magistério universitário e realizou trabalho de investigação atualizado com parcos meios e recursos. Foi a primeira mulher portuguesa a ser doutorada em farmácia. A sua vida e a sua obra são dignas de estudos mais consistentes e aprofundados e que temos em curso.

Fontes de arquivo

SANTOS, Maria Serpa dos — Processo de Professor. Documentos dispersos (Arquivo da Universidade de Coimbra — AUC – DIV-S1ªD-E.6-T2)

Bibliografia

BELL, Victoria — Introdução dos antibióticos em Portugal: ciência, técnica e sociedade (anos 40 a 60 do século XX). Estudo de caso da penicilina. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2014. Tese de doutoramento.

Festejando... Revista Portuguesa de Farmácia. 22:3 (1972) 287-288.

Maria Serpa dos Santos. In: Antigos estudantes ilustres da Universidade do Porto. https://sigarra.up.pt/up/pt/web_base.gera_pagina?p_pagina=antigos%20estudantes%20ilustres%20-%20maria%20serpa%20dos%20santos (acedido em 24.05.2016)

PEREIRA, Ana Leonor; PITA, João Rui — Fleming e a penicilina. O trabalho pioneiro de cientistas farmacêuticos na sua divulgação em Portugal (II). Mundo Farmacêutico. 4:20(2006) 64-66.

Primeira (A) mulher doutorada: Leopoldina Ferreira Paulo. In: O Centenário. História da U.Porto. http://centenario.up.pt/ver_momento.php?id_momento=37 (acedido em 24.05.2016)

SILVA, João Poiares da — Recordando Maria Serpa dos Santos. Revista da Ordem dos Farmacêuticos – ROF. 98 (2011) 71.

NOTA: este texto integra-se no âmbito de atividades do Grupo de História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX – CEIS20, Universidade de Coimbra. FCT- UID/HIS/00460/2013.

Prof.ª Doutora Victoria Bell
Professora Auxiliar Convidada da Faculdade de Farmácia. Investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX – CEIS20, Universidade de Coimbra.

Prof. Doutor João Rui Pita
Professor Associado com Agregação da Faculdade de Farmácia. Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX – CEIS20, Universidade de Coimbra.

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